Decisão que salva vidas
No ano passado, foram realizados 23 mil transplantes no Brasil, um crescimento de 124% em 10 anos. Apesar do recorde, mais de 21 mil pessoas ainda esperam na fila por um órgão
Fernando Poffo
Fernando Poffo

O doloroso momento da morte de alguém querido pede um gesto de generosidade dos familiares. Ainda que o sofrimento da perda não possa ser atenuado, o fato de saber que esse ato de sensibilidade e amor pode salvar vidas traz muita esperança e conforto. E os brasileiros parecem estar mais conscientes disso, uma vez que nos últimos anos a doação de órgãos vem se tornando cada vez mais comum. No ano passado, o País registrou 23.397 transplantes, recorde do setor, e um aumento de 124% em 1 década.
"Atingimos um patamar importante e hoje o Brasil é uma referência. Possuímos o maior sistema público de transplantes do mundo, onde 95% das cirurgias são realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de forma totalmente gratuita", comemorou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, durante coletiva sobre o assunto no mês passado.
Com esses números, o Brasil chegou ao índice de 11,4 doadores por milhão de pessoas, sendo que em 2003 eram apenas cinco. A meta do Governo é chegar a uma proporção de 15 doadores por milhão de pessoas em 4 anos. O resultado é para se comemorar, mas ainda estamos muito aquém de países como a Espanha, que é líder mundial de transplantes, com um índice de 35,3 doadores por cada milhão de pessoas.

Somente no ano passado foi investido no Brasil R$ 1,3 bilhão no setor para garantir recursos e financiar os 680 centros espalhados por todo País. A estrutura disponível ajuda pessoas como Edilene Pereira Neves, de 40 anos, professora na rede pública estadual de São Paulo, que voltou a dar aulas após um transplante de rim, depois de ter ficado afastada por 3 anos. Durante o ano em que ficou na fila para conseguir o órgão, ela fazia três vezes por semana diálise – procedimento que faz o que o rim deveria fazer, ou seja, filtrar todo o sangue do paciente. Edilene conta que antes da cirurgia, que ocorreu em agosto passado, lhe faltava disposição para cuidar da casa e dos filhos gêmeos, e que vivia basicamente em função das idas ao médico. "Mudou tudo. Passei a ter vida social. Trabalho e hoje vivo superbem", disse a mineira, que não cansa de agradecer pelo gesto de um senhor de 51 anos que nunca chegou a conhecer. "Ele merece toda gratidão pelo ato de amor que salvou a minha vida."
Mas, apesar de todo investimento e de histórias como a de Edilene se multiplicarem pelo País, dá para melhorar, avalia José Medina Pestana, presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). "Dá para dobrar o número de doadores em 5 ou 10 anos, mas é preciso atender com eficiência os potenciais doadores", acredita o médico, que aponta para a necessidade de se equilibrar a qualidade dos transplantes em todo o Brasil.
Segundo dados da ABTO, a diferença entre cada Estado é gritante. Santa Catarina lidera o ranking, com 25,4 doadores por milhão de -pessoas – mais que o dobro da média nacional – , seguido por Ceará (19,9) e São Paulo (19,2). Na outra ponta está o Maranhão, que teve menos de um doador por milhão de habitantes (0,6), um pouco pior que Alagoas (1). "Existe uma diferença enorme em todos os setores no Brasil. A cultura é diferente, os incentivos são outros e em alguns lugares não há vontade política", avalia o cirurgião do Programa de Transplante de Pulmão do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas, Paulo Pêgo.

Além de melhorar a estrutura para que os transplantes sejam realizados com eficácia, a conscientização das pessoas é outro ponto crucial. No ano passado, 1.937 pessoas não tiveram os órgãos doados porque seus familiares se recusaram. Como cada pessoa pode doar vários órgãos, se essas recusas fossem evitadas a fila de transplantes, que hoje conta com 21.827 pessoas, estaria bem menor.
"O principal fator para a família negar a doação é não saber qual era a vontade da pessoa. Então, quem quiser ser doador, deve avisar os parentes. É como uma herança que todo mundo deixa e avisa que tal anel vai ficar para tal neta quando morrer", diz Medina, salientando que a família não precisa apresentar nenhum documento para autorizar a doação.
Para Pêgo, esse receio é ainda mais comum quando o potencial doador é uma criança, pois os pais ficam mais sensibilizados e receosos. No entanto, mesmo diante disso, em 2011, o Incor chegou ao 100º transplante de coração entre crianças e adolescentes. Casos como o de uma menina de 12 anos baleada na cabeça, em Manaus (AM), durante o carnaval, demonstram que a generosidade pode ser mais forte do que a dor diante de uma tragédia. Após os médicos anunciarem a morte encefálica da jovem, os familiares decidiram pela doação.
O gesto de renovar uma vida faz com que a esperança seja cada vez maior na fila de transplantes, onde o ideal é não haver mais esperas, como já ocorre em alguns Estados com as córneas. Mas essa ainda está longe de ser a realidade no Brasil, que tem mais de 19 mil pessoas esperando por um rim.
O coração de Eloá ainda bate

O
rumo do coração de Eloá foi acompanhado e a regra do anonimato foi quebrada por conta da repercussão do caso. Hoje o órgão bate forte no peito de Maria Augusta Silva dos Anjos, de 42 anos, que estava na fila dos transplantes havia 2 anos. A paraense passou quase 4 décadas com dificuldade para subir e descer escadas em razão de uma doença congênita no coração. Até para beber água era complicado. Na escola, ela sofria rejeição por ser considerada doente, mas ganhou nova vida com o coração de Eloá.

"Eu tento me neutralizar para não sofrer muito. Penso na tristeza, na imagem dela na janela e como era jovem. É um misto de tristeza e alegria, porque nasci de novo aos 39 anos", admitiu a tecelã, em entrevista ao programa Hoje em Dia, da "Rede Record". "Foram os 3 melhores anos da minha vida", revelou Maria Augusta, que construiu uma amizade com a mãe de Eloá. "Eu a amo muito e agradeço pelo gesto nobre num momento de dor, que salvou a minha vida e de outras pessoas."
Desafio médico
Uma menina de 9 anos recebeu seis órgãos no final de janeiro deste ano no Hospital Infantil de Boston, nos Estados Unidos. A operação incluiu estômago, fígado, pâncreas, esôfago, intestino delgado e baço. A arriscada cirurgia era a única opção de Alannah Shevenell, que desde 2008 tinha um tumor que se expandiu por quase o corpo todo.
"Não havia maneira de retirar o tumor sem retirar os órgãos, porque se retirássemos o tumor, os órgãos não receberiam sangue e morreriam", comentou o diretor do Centro de Transplante Pediátrico do Hospital Infantil, Bae Kim, ao jornal "Boston Globe".
Kim comemorou o sucesso da cirurgia, que durou 14 horas, e agradeceu à família do menino que serviu de doador, que tinha o mesmo tamanho e tipo sanguíneo de Alannah.
Apesar de estar com a imunidade baixa, de precisar tomar nove remédios por dia e de ter de ser submetida a exames frequentes e a uma dieta controlada, a garota está tentando levar uma vida normal ao lado dos avós que moram com ela. Segundo seu médico, no futuro, Alannah não terá restrições para executar qualquer atividade.

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