quarta-feira, 18 de julho de 2012

Adotados e devolvidos

Pouco divulgados, os casos de devolução pós-adoção existem e dificultam o processo para tirar de abrigos 40 mil crianças que esperam um novo lar. A adoção deveria ser para sempre, como um filho biológico, mas...

Raul Andreucci | Arte: Edi Edson e montagem sobre foto Fotolia

A adoção de crianças e adolescentes no Brasil deveria ser simples, rápida e fácil. Principalmente depois de 2009, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sofreu alterações, em tese, para melhorar inclusive esse processo. O que se verifica, porém, é exatamente o oposto: um cenário complicado, lento e difícil. Causado por desinformação e despreparo, falta de estrutura e de pessoal e, recentemente, pelo drama da devolução.


Para a criança devolvida, não importa qual é a falha que interrompe seu caminho até um novo lar. "Os danos são terríveis, destroem parte da identidade e da autoestima da pessoa. Faz com que a criança tenha comportamentos interiorizados, depressão, ansiedade e grande dificuldade de vinculação afetiva", afirma a psicóloga Lidia Weber, professora da Universidade Federal do Paraná e principal especialista em adoção no País.


Só dois casos de devolução foram divulgados em jornais brasileiros na última década. Parece pouco, mas estima-se que muitos outros nem sequer cheguem ao noticiário, pois não há dados oficiais sobre devoluções no Brasil. "Não existe número de quase nada", reclama Lidia. "Pensei em levantar esses números e até comecei, mas é praticamente impossível."


O mais recente episódio aconteceu em Gaspar, cidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Dois irmãos foram adotados por um casal que, em 2010, 6 anos depois, quis devolver o menino e permanecer com a menina. Assistente social e psicóloga, integrantes do corpo técnico da Vara da Infância e da Juventude, verificaram que não havia condições de a família ficar com nenhum e ambos retornaram para a instituição de acolhimento, os antigos abrigos. A Justiça ainda determinou indenização por danos morais em R$ 80 mil, valor que foi depositado em juízo e será recuperado pelos jovens quando completarem 18 anos.


"Como, por lei, não é permitido separar os irmãos disponíveis para adoção, algumas pessoas levam dois, três, só para estabelecer o vínculo familiar. Depois, quando não suportam mais algum, simplesmente alegam que não houve adaptação. É um absurdo", esbraveja Mônica Natale de Camargo, gerente executiva do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp) e mãe de duas crianças adotivas, um menino de 8 anos e uma menina de 3.


O outro episódio, registrado em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, ganhou destaque em abril deste ano graças à sentença favorável ao garoto devolvido. O enredo é quase o mesmo. Adotado em 1999, quando tinha 4 anos, também foi separado da irmã, 2 anos mais tarde. Ele pediu à Justiça para retornar à instituição Missão Criança porque era maltratado, o que foi comprovado por promotor e juíza. Só agora, prestes a atingir a maioridade, em outubro, sem família e longe da irmã, é que ganhou R$ 15 mil de indenização por danos morais e terá mensalmente 15% do salário mínimo (R$ 93,30 atuais) até completar os estudos, aos 24 anos.


"É complicado, porque quando se adota definitivamente a criança passa a ser seu filho para todos os efeitos legais. Está na lei. E aí, como faz, você devolve o seu filho?", questiona Silvana Mancini, advogada, voluntária de um abrigo e autora do livro "Adoção – Os Filhos do Coração". A lei, por incrível que pareça, não entra no mérito da devolução. Mas quando a adoção é deferida pelo juiz, devidamente oficializada, seu vínculo torna-se "irrevogável e irretratável", alerta a cartilha sobre o tema da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP). Por isso, devolver acaba sendo sempre passível de processo na Justiça, seja cível ou criminalmente.


O problema começa lá atrás, na origem do desejo de adotar. Os futuros pais esquecem que "o sentido da adoção é procurar família para uma criança, e não para preencher o sentimento egoísta do adulto, nem a vontade altruísta de só pensar no outro", esclarece Antônio Carlos Berlini, presidente da Comissão de Direito à Adoção da OAB-SP. "As pessoas confundem as coisas", acrescenta. E esse erro acaba se transformando numa obstinação pelo perfil ideal.


Todos querem meninas de até 3 anos, brancas, de olhos claros, sem irmãos e sem deficiências físicas ou mentais. Um tipo praticamente impossível de achar, já que a maioria é parda ou negra (64%) e têm irmãos (77%), de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não é estranho, portanto, que o último levantamento do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), feito no fim de maio, aponte número de pretendentes (28.041) cinco vezes maior do que o de crianças aptas a serem adotadas (5.240). "O maior entrave para a adoção é a exigência", reconhece Nicolau Lupianhes, juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça e coordenador do CNA. "Algumas pessoas pensam que estão na prateleira do supermercado", completa Silvana, irritada.


Sem falar nos números, "bem falaciosos", segundo Lidia Weber. "Existem quase 40 mil crianças em abrigos de todo o Brasil, número do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Onde foram parar as outras 35 mil? Esquecidas nos abrigos, seja porque os processos ainda não foram vistos ou não se decidiu o que fazer", questiona.


Os grupos de apoio à adoção, como o Gaasp, geralmente são recomendados pela Justiça aos pretendentes para ajudar na preparação. Antes de se tornarem aptos, inscritos no CNA, e até depois de concluída a adoção. "Para conhecer todas as situações que podem e devem acontecer. Afinal, quem vai ter filho arruma quarto, tem 9 meses para digerir aquilo. E a mãe adotiva também precisa disso tudo", lembra Mônica.


O Gaasp tenta, inclusive, convencer os pretendentes a deixar de lado suas preferências. Convida para um curso específico quem já está na fila e tem cabeça mais aberta. "Não obrigamos ninguém a nada. Só fazemos com que a pessoa reflita. A maioria descobre que o perfil é besteira", conta, orgulhosa dos 42% que mudaram de ideia no último Pró-Lar.


Em certos casos não há o que fazer. "Alguns não têm a mínima condição de adotar, têm como referencial cuidar de cachorro", revela Alberta Emília Dolores de Goes, assistente social e mestranda do Programa de Pós-Graduação do Serviço Social da PUC-SP. E é aí que entra o trabalho do corpo técnico da Vara da Infância e da Juventude. Por isso, "temos de dotar todo o processo de gente com qualificação suficiente", pede o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, pai de duas filhas adotivas. "E infraestrutura. Políticas públicas, projetos, leis, tudo isso já temos. Ah, também uma pitada de vontade política", acrescenta Berlini.




Nem sempre, contudo, a questão é de qualidade. Segundo Alberta, "pode acontecer de o pretendente passar pelas etapas de avaliação e certos aspectos permanecerem obscuros. Por mais que a gente tente engessar tudo num perfil, consegue se camuflar de alguma forma. Só aparecem, por exemplo, quando a criança já está sendo agredida, no estágio de convivência". A devolução durante esse período final do processo, quando a criança passa a morar com a provável e futura família, não atenua o trauma. "É uma violência. Aquilo que era para ser bacana vira um novo drama. Para a criança, esse estágio de convivência não tem nome, é a família que ela gostou e pronto. Só não tem ainda o documento oficial", explica Alberta.


Na opinião da psicóloga Lidia Weber, as pessoas acham que quando cansam, podem devolver a criança. "Não é bem assim que funciona. É incompreensível, não entendo qualquer argumento para explicar uma devolução", diz ela. Ainda assim, a especialista demonstra otimismo. "Somos seres muito elásticos e as crianças estão ainda mais prontas para criar vínculos afetivos. É o que nos faz seres humanos: a capacidade de amar e ser amados. Todos somos capazes de nos recuperar". Tomara.


Famosos que adotam ou são adotados


Adoções não são protagonizadas só por anônimos. Recentemente, a celebridade que chamou a atenção de fotógrafos foi a atriz sul-africana Charlize Theron, de 36 anos. Solteira, ela adotou um bebê com poucos meses de vida. "É exatamente a sensação que esperava sentir. Nem sei como descrever isso", disse num programa de TV dos EUA.


Mais acostumados com os flashes quando saem em família, os atores americanos Angelina Jolie e Brad Pitt têm seis filhos, três deles adotados. Nicole Kidman, Tom Cruise e a cantora Madonna também têm filhos adotivos.


No Brasil, vários famosos adotaram crianças Há também celebridades que foram adotadas. Caso, por exemplo, do cantor Milton Nascimento. Natural do Rio de Janeiro, ele perdeu a mãe, uma empregada doméstica, com pouco mais de 1 ano. Foi viver com a avó em Minas Gerais e, ainda menino, foi adotado pela filha da ex-patroa de sua mãe.


O jogador de futebol Paulo Henrique Ganso, do Santos, é outro filho adotivo. A revelação foi feita há 2 anos, mas o camisa 10 sabia da história desde pequeno. Ele foi cuidado pela irmã do pai biológico, Amarildo, um ex-jogador do Remo, no Pará.


Devolução não  é o fim da linha


Cineasta adota criança rejeitada. Numa briga, ela disse: "Te escolhi para ser meu fiho. É para sempre"


Traumática, a devolução de crianças adotadas não encerra a chance de se achar um novo lar. Fábio Yamazaki, de 33 anos, é exemplo disso. Aos 2 anos, largado pela mãe biológica, foi para uma entidade de acolhimento do Rio. A adoção veio 5 anos depois. Mas durou 1 mês. "Foi doloroso. Mais uma rejeição. Sofri demais e tive muitos complexos por isso. A dor chegava a ser física."


Fábio teve de voltar à instituição e aguardar por 1 ano. Aos 8 anos, a cineasta Tizuka Yamazaki, decidiu virar sua mãe. A escolha mostrou-se certa quando Tizuka foi à instituição com seu filho genético, Ilya, na época com 4 anos. As duas crianças brincaram e Ilya até chorou na hora de ir embora. "Eu não sabia como era conviver com uma família. Fui uma peste", admite o rapaz. "Minha mãe segurou a barra. Um dia, após mais uma aprontada minha, ela disse: ‘Nem preciso dizer que gosto de você. Quando a gente gera um filho tem um embrião dentro da gente que não foi escolhido. Eu fui até uma instituição e te escolhi, com todos seus defeitos e qualidades. Escolhi você para ser meu filho para sempre’."


* Informações extraídas do livro "Filhos Adotivos, Pais Adotados", organizado por Lidia Weber


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